Aos prantos, líder indígena nega que Guarani morto em ação policial estava armado; ‘Nem comida a gente tem às vezes’

(Reprodução/Youtube)

01 de julho de 2022

15:07

Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium

MANAUS — A cacique Guarani-Kaiowá Valdelice Veron negou nessa quinta-feira, 30, que o indígena Vito Fernandes, de 42 anos, estava com armamento pesado durante uma operação de tropas de choque da Polícia Militar (PM), em uma propriedade rural de Amambai, em Mato Grosso do Sul. Na ocasião, Fernandes foi morto com três perfurações de armas de fogo. Autoridades de segurança afirmam que a polícia foi recebida a tiros na comunidade, mas indígenas negam.

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Valdelice foi uma das lideranças de aldeias de Amambai ouvidas pelo Ministério Público Federal (MPF) sobre os conflitos na região. Em depoimento às autoridades, a cacique pediu por Justiça e para que os ataques aos indígenas sejam cessados, além de relatar que Vito Fernandes estava “coxo”, ou seja, manco, impossibilitado de carregar armamento pesado por apresentar uma deficiência física na perna.

“Como que o Vito estava com armamento pesado se ele era “coxo”? Ele andava assim, ó. Como que ele ia correr, ele não conseguiu correr […] Chega de mentira, eles estão mentindo. Como que nós estamos lá com armamento pesado, se nem comida muitas vezes a gente tem. É um massacre, é um genocídio, é um terrorismo que estamos vivendo”, relatou, aos prantos, a cacique Valdelice Veron.

No vídeo, compartilhado nas redes sociais e obtido pela REVISTA CENARIUM, a líder indígena chama a atenção ainda que o ataque ao povo Guarani-Kaiowá não é o primeiro que acontece. Valdelice narra que chegou a ficar em coma, em 2017, porque não estava mais aguentando viver em meio aos confrontos contra sua etnia.

Confira o vídeo:

Cacique Valdelice Veron (Reprodução)

Confronto com os Guarani

confronto entre povos originários da etnia Guarani-Kaiowá e policiais militares, em Amambai, aconteceu na quinta-feira, 23, e se acirrou na sexta-feira, 24, com relatos de tiros e mortes de indígenas e policiais lesionados. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) mencionou que dois óbitos foram relatados, mas apenas uma morte foi confirmada pelo hospital, que recebeu os feridos do confronto.

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O episódio envolveu um grupo de 30 indígenas da região e cerca de 100 militares. Segundo o secretário de Justiça e Segurança Pública, Antônio Carlos Videira, os indígenas ocuparam a propriedade rural e as tropas de choque foram acionadas para atenderem “ocorrência de crime contra o patrimônio e contra a vida” e para auxiliar na manutenção da paz. Ao chegar na região, os policiais militares afirmam que foram recebidos a tiros.

Os indígenas, no entanto, afirmam serem donos do território e que ocuparam Guapoy porque é uma terra ancestral. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), “Guapoy é parte de um território tradicional que lhes foi roubado – quando houve a subtração de parte da reserva de Amambai”.

Conflitos históricos

Valdelice é professora e filha do também cacique Guarani-Kaiowá Marcos Veron, assassinado, aos 72 anos, em janeiro de 2003. À época, após ter liderado cerca de cem indígenas em uma retomada da posse da terra indígena Taquara, o cacique foi agredido com socos, pontapés e coronhadas de espingarda na cabeça, na Fazenda Brasília do Sul, em Juti, em Mato Grosso do Sul.

No dia do assassinato, Marcos Veron foi levado ao hospital com traumatismo craniano, mas não resistiu e foi a óbito. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o caso aconteceu após um grupo de 30 a 40 homens armados ser contratado para agredir os indígenas que estavam em acampamento na região, resultando em um conflito, com sequestros, mortes e atos de vandalismo, entre o dia 12 e 13 de janeiro daquele ano.

Quatro homens foram acusados de agredir o cacique Marcos Veron. Três deles, identificados como Carlos Roberto dos Santos, Jorge Cristaldo Insabralde e Estevão Romero, ficaram quatro anos e oito meses sob prisão preventiva acusados de matar o cacique. Em 2011, contudo, eles foram absolvidos pelos crimes de homicídio e tentativas de homicídio, mas foram condenados a 12 anos e três meses de prisão por sequestros, tortura, lesão corporal e formação de quadrilha.

O quarto acusado, Nivaldo Alves Oliveira, estava foragido na época do julgamento e o processo contra ele foi desmembrado e suspenso. Após 12 anos do crime, no entanto, Nilvaldo se entregou às autoridades. Em 23 de janeiro de 2015, o homem se apresentou na Procuradoria da República, em Dourados (a 214 quilômetros de Campo Grande), e o processo em relação a ele voltou a tramitar.