‘Auxiliam na construção do pensamento, é uma tradução temporal e atemporal da sociedade’, diz sociólogo sobre canções brasileiras com teor crítico e político

Ao longo dos anos 80 e 90 diversos artistas se destacaram pelas críticas às políticas públicas, aos governantes e representantes da sociedade em geral (Reprodução/Internet)

14 de julho de 2022

21:07

Ívina Garcia – Da Agência Amazônia

MANAUS – “Nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado. Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação“. A letra que compõe a conhecida canção “Que país é esse? é da banda brasiliense Legião Urbana, que assim como outros artistas nacionais usaram a música para falar sobre política aliada à esperança – ou não – de um Brasil novo.

A canção de 1987, que questiona sobre o País dos brasileiros, segue sendo atual ao destacar o trecho em que Renato Russo, intérprete e vocalista da banda canta: “Mas o Brasil vai ficar rico, vamos faturar R$ 1 milhão quando vendermos todas as almas dos nossos índios num leilão”, tecendo críticas às políticas ambientais da época.

O sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Luiz Antônio Nascimento avalia a relação entre música e política como uma tradução temporal e atemporal de comportamentos sociais. “É importante a gente pensar que a música é uma expressão cultural de uma dada sociedade, então, ela não está descolada do mundo real e das coisas, ela expressa a sociedade, inclusive, nas contradições e dificuldades“, explica o sociólogo.

Arte Censurada

Durante a ditadura militar, regime instaurado no Brasil em 1° de abril de 1964 e que durou até 15 de março de 1985, diversos artistas brasileiros tiveram faixas de álbuns censuradas por irem contra os princípios políticos da época. Mas a tentativa do Estado autoritário de silenciar os artistas nacionais e impedir manifestações políticas acabou estimulando ainda mais a criação de melodias que carregavam críticas escondidas ao sistema e funcionavam como um grito refletido da própria sociedade.

A canção “Estado Violência”, composta por Charles Galvin e interpretada pelos Titãs expressa tal percepção. Ainda no primeiro verso, a letra clama pelo fim das pressões sofridas. “Sinto no meu corpo a dor que angustia, a lei ao meu redor, a lei que eu não queria”.

Ao longo dos anos 80 e 90 outros artistas se destacaram pelas críticas às políticas públicas, aos governantes e representantes da sociedade em geral. A cantora Pitty e as bandas Capital Inicial, Ultraje a Rigor, Engenheiros do Hawaii e Paralamas do Sucesso são alguns exemplos de artistas que realizaram manifestações por meio do gênero.

A artista Pitty, conhecida por cantar diversos gêneros musicais, mas, principalmente, o rock, em um álbum lançado em 2019 trouxe a faixa “Noite Inteira”, parceria com Lazzo Matumbi, fez um levante contra o atual presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), eleito em 2018, período onde o conservadorismo conseguiu retornar aos holofotes e pedidos por ditadura militar chegaram às ruas. O trecho “Respeite a existência ou espere resistência” faz referência ao lema das inúmeras manifestações contrárias a Bolsonaro.

No entanto, as críticas não ficam só à direita ou extrema-direita. A banda Engenheiros do Hawaii, por exemplo, responsável pelo single político Toda forma de poder, critica a linguagem e a postura de alguns parlamentares, que segundo a banda, apresentam falas com teor vazio, como demonstra o trecho em que cantam: “Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada. Fidel e Pinochet tiram sarro de você que não faz nada“.

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Paralelo às críticas, os artistas também ajudavam nas campanhas políticas, desde a criação de músicas a favor de determinado espectro político, até a participação nos famosos “showmícios” – onde artistas iam aos comícios e reuniões de candidatos – atualmente, estão proibidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Durante as eleições, entre 1929 e 1930, um jingle composto por Francisco José Freire Júnior, intitulado “Seu Julinho Vem“, embalou a campanha à Presidência do candidato paulista Júlio Prestes, aliado do então presidente, Washington Luís.

A música fazia alusão à política do “café com leite”, na época em que os presidentes eram alternados entre mineiros e paulistas. “Seu Julinho vem, Seu Julinho vem, se o mineiro lá de cima descuidar“, cantava. Júlio ganhou as eleições, mas não chegou a assumir. O mineiro Getúlio Vargas virou chefe do governo provisório, após Washington Luís ser deposto.

De acordo com Luiz Antônio Nascimento, a história da política brasileira, pelo menos da República, se confunde com a história da música. “Em todos os processos políticos eleitorais a música sempre esteve presente nas disputas eleitorais. Existem marchinhas datadas da primeira década do século 20 com grandes nomes da música brasileira compondo jingles para as candidaturas, tanto no campo conservador, como nas do campo democrático e de esquerda“.

Ao longo dos anos, outros artistas chegaram a participar de composições em apoios a candidatos, como Nelson Gonçalves, em “Caixinha do Adhemar“, apoiando Adhemar de Barros à Presidência da República em 1960; “Experimente Suplicy“, composta por Chico Malfitani para a campanha à prefeitura de Eduardo Suplicy, em 1985; a famosa “Sem Medo de Ser Feliz (Lula Lá)“, composta por Hilton Acioli e Paulo de Tarso para a campanha de Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva, em 1989, utilizada até hoje com pequenas mudanças na melodia.

Paixão pela música

Música tem sido, desde a infância, uma paixão inenarrável“, afirma o músico Sonny Monteiro que contou à CENARIUM sobre o impacto dessa arte em sua vida. Com uma trajetória musical iniciada ainda na infância, Sonny diz ter encontrado no rock mais pesado o “eco dos anseios pessoais”, tanto em um aspecto íntimo, como indivíduo perante à sociedade, como em um aspecto externo mais crítico com visão sobre sociedade e política.

Música para mim sempre foi uma expressão, primeiro de carinho, depois também de revolta. E foi a razão pela qual eu fui tão atraído e resolvi ficar. Hoje, é parte de mim, indissociável, artística e politicamente falando”, diz o músico.

As críticas dos artistas nacionais contrários a ditadura e as músicas internacionais que falavam sobre intervenções imperialistas estadunidenses contra a soberania de certos países reflete diretamente em como o músico encara sua realidade.

Tudo isso harmonizou com o meu crescimento pessoal, meus interesses e estudos e, enfim, minha formação como cidadão. Música sempre esteve e estará presente, seja na voz de Chicos (Buarque, Science), D2, seja na de Brody Dale, Nirvana, ou mesmo artistas mais atuais como Emicida, Jaloo, Pitty, Pabllo Vittar. Música é expressão. Foi o que me atraiu e é a razão pela qual fiquei com ela“, completa.

Eleições 2022

Em um ano tomado por tensões políticas e mais uma vez pela polarização, Lula (PT) e Bolsonaro (PL) despontam como os pré-candidatos mais fortes para as eleições presidenciais de 2022. Pelo lado de fora, corre a “terceira via“, representada por Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), sem números expressivos para um segundo turno contra os candidatos do PT e do PL.

Com as convenções partidárias se aproximando, apesar dos artistas não participarem, alguns já deixaram claro suas posições políticas, utilizando sua voz não apenas para cantar ou atuar, mas para fixar posicionamento e pensamento crítico.

Recentemente, as declarações da cantora Anitta apoiando o pré-candidato Lula ascenderam a discussão partidária no meio artístico. A cantora expressou apoio oficial ao petista após o assassinato do tesoureiro do PT, Marcelo Arruda, morto durante a própria comemoração de 50 anos por um apoiador de Bolsonaro que invadiu a festa aos gritos de “Aqui é Bolsonaro” e “Mito” e atirou no aniversariante que tinha o PT como tema de sua festa.

A cantora escreveu: “Se não houvesse uma morte envolvida neste caso do apoiador de Lula, que foi atacado por um bolsonarista, eu diria que a burrice dessas pessoas chega a ser engraçada. Mas não. É apavorante. Pois, muito que bem. Eu havia falado aqui nas redes que não apoiaria Lula nas eleições por querer algo novo e diferente para que o Brasil experimente um meio-termo entre os ideais da população dos dois lados e, realmente, pudesse tentar algo diferente do que já tivemos no passado. Mas, a aposta extremamente agressiva e antidemocrática dessa gente não me deixa outra opção. É LULA LÁ … seus burros, agressores, autoritários e violentos“, postou a cantora fazendo alusão ao famoso jingle do ex-presidente.

Conforme o sociólogo Luiz Antônio, as canções, de fato, são ferramentas capazes de promover reflexões. Ele destaca que o posicionamento por parte de artistas ajuda a levantar discussões saudáveis, apesar de não acreditar que elas sejam capazes de “mudar votos“.

Não tem nenhum elemento efetivo que vá nos indicar que a posição política e o comprometimento partidário deste ou daquele músico produz votos“. Para ele não há transferência de votos quando artistas declaram apoio a alguma candidatura. “O que se pode constatar é que apoiar ou não uma candidatura fortalece a imagem daquela candidatura no grupo específico daquele artista“.

De acordo com levantamento das redes sociais de Lula e Jair Bolsonaro, feito pelo cientista da Big Data Alek Maracaja, da agência AtivaWeb, após o apoio de Anitta, Lula apresentou um acrescimento na taxa de engajamento que vinha caindo desde abril. Mas, mesmo com a queda registrada anteriormente, o ex-presidente possui engajamento maior do que Jair Bolsonaro.

Quando Anitta diz ‘eu vou votar no Lula’, ela está mobilizando milhões de pessoas para pensar e debater a candidatura do Lula, isso tem um valor poderoso e muito importante para estimular que as pessoas façam considerações e reflexões“, explica o sociólogo.

Além da cantora, outros artistas já declaram apoio aos pré-candidatos deste ano, como Tico Santa Cruz, da banda Detonautas, que mostrou apoio ao candidato do PDT, Ciro Gomes; o cantor Gustavo Lima, assim como outros cantores sertanejos, já fizeram homenagens ao atual presidente Bolsonaro; a cantora Luiza Sonza que já se posicionou a favor de Lula; o cantor Caetano Veloso também se declarou em favor de Lula; e outros.

“A arte tem essa responsabilidade crítica e social em nossas vidas, não somente para nos entreter. A música, em seus diferentes gêneros, pode trazer ricas mensagens. A voz do artista dá vida a cada letra que pode se tornar canções ícones representando protesto, pedido justiça, paz, indignação ou tema mais abordado que, geralmente, é o amor e o relacionamento. É a participação da arte musicada para a constante construção da política e outros setores da nossa sociedade“, finaliza.