‘Caso Bemol’: por que as mulheres são sempre as ‘vilãs’ nos casos extraconjugais?

As redes sociais repercutem escândalos de infidelidades a todo momento, sejam elas de famosos ou anônimos, mas quase sempre a mulher é a "vilã" (Reprodução/Internet)

10 de fevereiro de 2023

16:02

Mencius Melo – Da Agência Amazônia

MANAUS – Um caso recente de “traição” repercutiu nas redes sociais em Manaus. Uma esposa, ao que tudo indica, traída, resolveu ir à loja de departamentos Bemol denunciar, publicamente, a amante de seu marido. De celular em punhos, gravou a sequência de agressões e, uma vez postado, o vídeo viralizou e desde quarta-feira, 8, o assunto se tornou um dos mais comentados nas plataformas.

A AGÊNCIA AMAZÔNIA entrevistou profissionais para entender o “eterno papel de vilã” que a história reserva para aquelas que passam por esse contexto. Da bíblica Eva à perseguida princesa Diana, a trajetória das mulheres nas sociedades é um capítulo à parte na história humana.

‘Perseu com a cabeça de Medusa’. A submissão e “a culpa” feminina atravessa os séculos e se faz presente nas sociedades patriarcais (Reprodução/Underthehome)

Para a psicóloga Samiza Soares, a vilania da “outra” é recorrente: “Quando uma história de traição vem à tona, é muito comum que se considere a amante a vilã, pivô de um relacionamento abalado. Mesmo que seja solteira, ela é quem acaba levando a culpa pela traição e não o homem que traiu. O linchamento público da amante é algo recorrente na mídia e na história, não é mesmo?”, questiona a psicóloga.

Samiza analisa a repercussão do caso sob a ótica do patriarcado e das convenções e afirma ver toda a carga simbólica que a história carrega: “(…) é uma sociedade patriarcal que condena o comportamento feminino. O do homem, porém, permanece intacto, protegido pelo ‘instinto'”, observa. “Culpar a amante pela traição é uma forma de terceirizar os problemas do relacionamento. E o coitadinho do esposo? Não poderia ter resistido às investidas? Não poderia ter dito ‘sou comprometido’ e não ter levado adiante o envolvimento?”, questionou.

Para a psicóloga Samiza Soares, a ‘vilania feminina’ é sempre fruto do patriarcado que impõe mitos e crenças sobre o papel da mulher em sociedade (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Mitos e crenças

A psicóloga olha pelas janelas da história que perpetua um comportamento social reprovável atrelado a crenças e mitos que ajudam na construção de uma visão distorcida de gênero. “Tudo isso é resultado de uma crença machista de que a mulher deve suportar e manter a sagrada família, ao mesmo tempo em que mitos a colocam no papel da sedutora que traz a sedução e o pecado”, detalhou.

Samiza, por fim, desmistifica a “responsabilidade e a culpa” feminina. “Assim, fica fácil tirar a responsabilidade do homem, culpar a ‘mulher tentadora’ e perdoar o marido infiel. A meu ver, o peso deve ser dividido e a esposa deveria tomar atitudes com o marido, pois ele jurou ser fiel em algum momento e assumiu o compromisso de viver uma vida a dois com suas renúncias”, criticou.

Mulher lasciva

Professora titular da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), a antropóloga Iraildes Caldas faz uma viagem pela história. “A imagem de diabolização da mulher no Ocidente Cristão é algo bem antigo. Tertuliano tinha rejeição aos mistérios da maternidade e Santo Agostinho desdenhava do casamento, preferindo exaltar a virgindade. São Jerônimo chegou a dizer que o casamento era um dom do pecado e que o mandamento bíblico ‘crescei e multiplicai’ foi proferido depois da expulsão de Adão e Eva do paraíso’, analisou.

A representação de uma das mulheres mais comentadas da história: Maria Madalena. De prostituta à santa padroeira dos pecadores arrependidos (Reprodução/Internet)

Iraildes continua: “Toda essa misoginia era sustentada pela ideia que se construiu em torno da mulher como lasciva sexual, libertina assanhada e oferecida, que leva o homem à perdição, ao pecado. A mulher era a Eva venenosa, frívola, demoníaca, responsável pela queda do homem. É a mulher que seduz, que se oferece ao homem, o qual é um ser indefeso que propende a cair na lábia de uma mulher porque a deseja e quer levá-la para a cópula. O sexo é uma lascividade da mulher e não do homem”, comentou.

Assim como a psicóloga, Iraildes, mais uma vez, destaca o patriarcado que surge como força motriz. “A imagem da mulher fatal é central no imaginário dos povos de todos os tempos. O certo é que todos esses elementos que depreciam a imagem da mulher é uma representação do patriarcado. Então, quando presenciamos uma mulher casada derramando ódio, injúria despautério, violentando outra mulher, supostamente, amante do seu marido, com palavras de baixo calão, parece natural aos olhos de todos. Trata-se, na verdade, de violências contra essa mulher no nível simbólico e moral”, pontificou.

A professora Iraildes Caldas também vê o patriarcado como viga estruturante do machismo nas sociedades modernas (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Ao final, Iraildes Caldas afirma: “É, pois, a própria mulher que deprecia outra mulher que a violenta fragorosamente. A sexualidade da mulher é o elemento central dos despautérios proferidos pela esposa contra a outra, tal qual faziam os padres doutores da igreja, no período do Cristianismo Antigo. Estamos, pois, diante de um femismo (reverso) da mesma forma que ocorre o machismo no caso do gênero masculino”, finalizou.

Respeito

A Bemol se posicionou na manhã desta sexta-feira, 10, por meio de nota assinada pela diretoria do grupo e publicada no perfil oficial da empresa no Instagram, afirmando que alguns comentários deixaram diversas colaboradoras desconfortáveis. “Algumas pessoas e comentários passaram dos limites. Gostaríamos então de pedir respeito”, destaca trecho do comunicado.

A empresa “espera que essa delicada situação traga também aprendizado e apoio às mulheres“, finaliza a nota.

Comunicado divulgado pela Bemol (Divulgação)