Direito da mulher ao aborto em caso de estupro e doenças no feto ganha as redes e divide opiniões

Considerado um tabu social, o aborto está no centro dos debates em Brasil polarizado e cada vez mais conservador (Reprodução/Getty Images/iStockphoto)

04 de setembro de 2020

09:09

Mencius Melo

MANAUS – Em tempos de um Brasil polarizado, temas considerados tabus, ganham as redes sociais e descortinam o que, de fato, pensam líderes políticos, profissionais da saúde e do direito além, claro, do “cidadão comum”.

Entre esses temas está o aborto. A reportagem da CENARIUM conversou com personalidades ligadas à política, antropologia e psicologia e com religiosos para saber qual o entendimento que se tem sobre o tema tão espinhoso.

O vereador Fred Mota (Republicanos/AM) é evangélico e tem a seguinte opinião. “Sou contra qualquer tipo de flexibilização do aborto. Sou pró-vida e as situações para ocorrência do aborto já estão previstas no código penal”, declarou ambiguamente.   

Para o parlamentar, a melhor maneira de se encarar o aborto, é não engravidar. “A iniciativa do nosso País em fazer um esforço para prevenção de possível gravidez indesejada que acabam precedendo um possível aborto, é válida”, observou Mota.

Lugar do outro

Para a antropóloga Fabiane Vinente, a sociedade brasileira passa por um dilema profundo. “As pessoas que colocam o aborto como crime, são as mesmas pessoas que vibram com vídeos de execução comandada por policiais à moradores na periferia. São as mesmas que em um acidente de trânsito, filmam as vítimas agonizando para em seguida compartilhar no WhatsApp. São pessoas que idolatram a morte. É pura hipocrisia”, criticou.

Para Fabiane, o aborto é uma prática muito presente na sociedade, mesmo que existam forças contrárias. “As pessoas não vão deixar de abortar porque o governo passou a criar impedimentos, pelo contrário, isso vai continuar ocorrendo só que de forma clandestina”, concluiu.

Incomodada, ela se posicionou. “Diante de um estupro, é preciso se colocar no lugar de uma garota, de uma mulher vítima de violência tão grande”, apelou.

Tema caro

A psicóloga Neyla Siqueira explica que o aborto é um tema espinhoso e sempre será. “É uma discussão que vem de séculos e continuará a acontecer”, destacou. Para ela, falar de aborto é tocar em desdobramentos complexos que permeiam diversas camadas da sociedade.

“Ao discutir aborto entramos na questão da perda da vida, da responsabilidade ou da irresponsabilidade da gravidez, tem a questão da continuação da espécie, tem o patriarcado que é muito forte na sociedade humana, e ainda existe o domínio e o controle dos corpos por parte da Igreja”, elencou.

De acordo com a psicóloga, é assunto delicado por natureza. “Mexe com a vida de crianças, mexe com o poder feminino em detrimento do masculino e finalmente, mexe com crenças”, analisou.

A violência do estupro

Neyla Siqueira toca diretamente na ferida quando o assunto é estupro. “Quando temos uma gravidez provocada por estupro, como foi o caso conturbado da menina de dez anos, vemos logo o posicionamento a ‘favor da vida’, mas, a favor da vida de quem?”, questiona.

A profissional continua. “Entra-se no debate do direito à vida que, teoricamente, vai se perder, mas, não se pensa no direito à vida da mulher estuprada e aí vem a eterna discussão filosófica do que é a vida e quando ela começa…”, refutou. “Diante do estupro, se eu tiver de escolher, escolho pela vida que já existe, que é a vida da vítima”, apontou.

Questionada sobre o fato de a religião contar como elemento decisivo para que uma mulher desista de praticar um aborto diante do estupro ou de uma doença grave no feto, Neyla respondeu. “Quando a mulher que passa por essa experiência traumática decide por sua religiosidade, por sua crença em dogmas e preceitos, não praticar, ok, decisão é dela, mas, uma coisa é ela decidir, outra coisa é terceiros quererem interferir. Ai não dá”, finalizou.

Já Frei Paulo, da Arquidiocese de Manaus, explica que em caso de gravidez provocada por estupro, deve prevalecer o direito de reivindicar o aborto, e o Estado segundo a lei vigente garantir todo procedimento até o acompanhamento à vítima. “Até porque a mulher vítima de estupro ou criança e adolescente com sua família tem todo um acompanhamento antes de realizar o procedimento do aborto”.

Ele é enfático. “É o livre arbítrio da vítima. Ninguém deve interferir , muito menos a sociedade, pois é decisão única a vítima jamais tem o direito de se expor diante da sociedade”.

Cruzada mundial

Segundo apuração do portal Metrópoles, o governo federal pretende estreitar laços com o governo dos Estados Unidos, para lançar uma cruzada global antiaborto.  

A informação é que o governo brasileiro tem negociado com os Estados Unidos uma proposta conjunta com o objetivo de liderar uma aliança internacional para se rejeitar o aborto em nome da defesa da família. As informações foram primeiramente publicadas pela coluna de Jamil Chade, no UOL.

Segundo a reportagem, ao assinarem a proposta, os países enfatizam que “em nenhum caso o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar ” e que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional”.

A proposta ainda não foi tornada pública pelo governo brasileiro. Segundo a reportagem, o documento será adotado no próximo dia 8 de setembro, depois de meses de uma intensa aproximação do governo brasileiro às alas mais conservadoras da sociedade estadunidense.

Entidades defensora de direitos humanos, e em especial das mulheres, no entanto, já se preocupam com o teor do documento. Na quarta-feira, 2, um requerimento ao qual o Metrópoles teve acesso foi apresentado pela entidade Conectas Direitos Humanos à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e à Comissão de Direitos Humanos do Senado.

O documento apresenta pedido para que esses colegiados convoquem o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para prestar esclarecimento sobre a iniciativa, visto que, em nenhum momento, se ouviu a sociedade sobre o documento intitulado “Declaração de Consenso de Genebra sobre a promoção da saúde da mulher e o fortalecimento da família”, finalizou o texto.