‘Direitos de memória’, analisa historiador sobre devolução de peças indígenas ao Brasil

Alguns dos 611 itens da coleção. (Reprodução/Museu do Índio)

21 de junho de 2023

14:06

Marcela Leiros – Da Agência Amazônia*

MANAUS – Após quase dez anos de batalha, a França aceitou devolver uma coleção com 611 itens indígenas que estão irregularmente no País. Os objetos foram cedidos ao Museu de Lille há quase uma década, em 2004, e deveriam ter sido devolvidos ao Museu do Índio em 2009. Os itens ficarão expostos no local, no Rio de Janeiro. O historiador Juarez da Silva afirma que a conquista representa o reconhecimento dos povos colonizados sobre direitos de memória.

A devolução foi confirmada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) nesta semana. Segundo o órgão, são 611 objetos, de 39 povos, a maioria do Brasil Central. “Pela data de produção, há indícios de que eles não sejam mais fabricados por estes povos. É um patrimônio cultural do Brasil”, afirmou o coordenador de Patrimônio Cultural do Museu do Índio, Bruno Oliveira Aroni.

Juarez da Silva analisa que o adiamento da devolução por parte do Museu de Lille apresenta uma “ideia supremacista de que tais objetos não poderiam ser preservados e valorizados nos próprios países de origem, acrescida de um histórico apego cosmopolita de exibição do ‘exótico’ e entendimento de que os bens culturais de outros povos podem tranquilamente serem tomados destes como se fosse um direito colonialista”.

O historiador comemora a retomada dos bens, afirmando que representa, principalmente, um reconhecimento de direitos por parte dos colonizados. “É bom ver que isso está mudando, não necessariamente por conscientização das antigas metrópoles, mas sim dos antigos colonizados, que resolveram exercer de forma firme seus direitos de memória”, afirma.

A Funai observou que são objetos de valor inestimável, como troncos de madeira usados pelos Kamaiurá, do Xingu, durante o Kuarup, ritual de despedida dos mortos. Leques de occipício, adornos de cabeça usados pelos Karajá durante a “Festa da Casa Grande”, que marca a passagem da infância para a vida adulta, também fazem parte da coleção cobiçada pelos franceses.

A Máscara Cara-Grande dos Tapirapé, usada no ritual mais tradicional do grupo por homens adultos e destruída no dia seguinte, pois o povo acredita que os espíritos ficam nas máscaras.

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Entenda a batalha judicial

Inicialmente, o museu da França desejou comprar o acervo, que pertencia a uma empresa sediada em São Paulo. No entanto, a saída dos objetos para a França não foi liberada pela Funai, pois a legislação impede que peças com partes de animais silvestres, presentes em muitos adornos, sejam levadas do País. A solução foi a aquisição, pelo Museu de Lille, e a imediata doação ao Museu do Índio. Em troca, a instituição brasileira autorizaria o empréstimo por cinco anos, renováveis por outros cinco.

De 2004 a 2009, o Museu de Lille expôs os bens, mas não renovou a aquisição. A partir de 2010, o Museu do Índio iniciou os pedidos de devolução, mas o museu francês afirmou que a coleção fazia parte do patrimônio de Lille, cidade no Norte da França. “A finalidade é valorizar a cultura brasileira junto ao público de Lille e ao público francês em geral, respeitando a integridade do patrimônio brasileiro cultural e natural”, responderam os franceses, em 2011.

Em 2013, a Funai admitiu renovar o empréstimo por três anos, mas os franceses responderam que só poderiam assinar o contrato no ano seguinte, o que não ocorreu. Servidores do Museu do Índio iniciaram, então, uma cotação para contratação da empresa de transportes.

Em 2015, o Ministério Público Federal (MPF) entrou no caso. A pressão do órgão se juntou à do Itamaraty, que começou o processo de convencimento. Em 2017, os franceses responderam que estavam à disposição para devolver os objetos, “com as despesas a cargo das autoridades brasileiras”, que somam mais de R$ 1 milhão.

(*) Com informações da Funai e do O Globo.