Especialistas e ativistas comemoram suspensão da lei que proibia linguagem neutra em Rondônia

Governo Bolsonaro proibiu o uso da chamada "linguagem neutra". (Arte: Ygor Fabio Barbosa)

24 de novembro de 2021

07:11

Iury Lima – Da Cenarium 

VILHENA (RO) – “Meu sentimento é esse: de descanso, mas ainda estou em alerta”. Esta é a sensação compartilhada por Vincent Abiorana, psicólogue e professore universitárie* de Rondônia. Elu e outros especialistas e ativistas ouvidos pela CENARIUM comemoraram a suspensão da Lei Nº 5.123, que proibia o uso da linguagem neutra nas escolas e concursos públicos do Estado, onde os poderes Legislativo e Executivo se uniram em um franco combate à comunidade LGBTQIA+, da qual fazem parte as pessoas não-binárias (aquelas de gênero neutro), que não se identificam nem como homens, nem como mulheres, que não seguem a definição em função da separação “homem e mulher”.

A decisão liminar do ministro Edson Fachin, assinada na última semana, reafirma que, ao contrário do que diz a lei endossada pelo governo estadual, o uso da linguagem neutra não interfere nem altera a norma padrão do idioma brasileiro, mas funciona como uma espécie de dialeto, sendo utilizada apenas para referenciar cidadãos de gênero não-binário, como forma de acolhimento e respeito (*como nesta reportagem), e não de maneira generalizada para todas as palavras da língua, como pensam a maioria da população e os representantes políticos de Rondônia. 

“Temos que continuar trabalhando em união dentro da nossa comunidade e também com outros grupos sociais. Eu entendo que esse é um sentimento que as pessoas de minorias sociais vivenciam todos os dias”, continuou Abiorana.

“Proibir qualquer assunto em sala de aula é sempre problemático e, nesse caso específico, dificulta o trabalho do professor de língua portuguesa em prol de uma educação linguística reflexiva, emancipadora e livre de preconceitos”, declarou a doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP/Araraquara e professora do Departamento Acadêmico de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Natália Cristine Prado. 

Ação do Supremo

Com eficácia suspensa, a lei derivada de um projeto de autoria do deputado estadual Eyder Brasil (União Brasil), aprovada e sancionada pelo governador Marcos Rocha, também do recém-criado partido, fruto da fusão entre DEM E PSL, “ofende materialmente a Constituição”, segundo Fachin. Ele avalia que o uso de termos neutros “visa a combater preconceitos linguísticos”, tendo em vista a finalidade de inclusão e promoção da dignidade. 

Edson Fachin, ministro do STF que concedeu liminar a favor da população LGBTQIA+. (Foto: Rosinei Coutinho/STF/Reprodução)

Inconformado, deputado critica STF

Eyder Brasil não gostou nada da decisão de Edson Fachin. Em um de seus perfis oficiais, o parlamentar rondoniense disse que considera “precipitada” a suspensão da lei. “Não iremos nos cansar até que a discussão em plenário aconteça, por entendermos que, de forma alguma, extrapolamos a competência”, escreveu. “Está claro, só não vê quem não quer! Vivemos uma grande militância do judiciário, que tomou o lado da esquerda política. Até onde nos permitir, por meio da nossa assessoria jurídica, defenderemos a nossa valorosa Língua Portuguesa”, continuou a postagem.

Autor do projeto que se tornou lei, o deputado Eyder Brasil diz que a proibição da linguagem neutra prioriza a “proteção” dos estudantes e da família [brasileira]. (Assessoria/Reprodução)

A manifestação do político foi publicada acompanhada de uma nota assinada por ele, por intermédio de sua assessoria jurídica, em resposta à proposição de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), promovida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee). O documento diz que a lei, agora suspensa, foi criada para respeitar “a aplicação das Normas do Ministério da Educação” e “proteger os alunos e a família”.

Nota de Eyder Brasil em resposta ao pedido de ADI contra a Lei Nº 5.213. (Reprodução/Redes sociais)

Faltou conhecimento e empatia

“Não faz o menor sentido pensar que qualquer uso não prestigiado da língua portuguesa, ou seja, qualquer uso que escape do que se conhece popularmente como ‘norma padrão’, pode colocar em risco um dos idiomas mais falados no planeta, sendo que o Brasil é o país com o maior número de falantes de português no mundo. Esse tipo de afirmação apenas demonstra desconhecimento sobre o funcionamento das línguas: qualquer estudioso da área sabe que não é porque determinado grupo começa a usar certas expressões que uma língua desaparece ou se enfraquece”, rebateu a doutora em Linguística e Língua Portuguesa Natália Prado. 

Segundo Natália, professora da Universidade Federal de Rondônia, uma língua corre o risco de desaparecer apenas quando seus falantes são dizimados, por exemplo.  “Toda língua passa por processos naturais de variação e mudança linguística, o que é absolutamente normal – basta observar as diferenças entre o português falado em Porto Velho e o português falado em outras cidades e Estados. Nenhuma língua natural é falada de maneira uniforme por todos os seus falantes e em todas as situações de uso”, acrescentou. 

Doutora em Linguística e Língua Portuguesa e professora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Natália Cristine Prado. (Reprodução/Acervo pessoal)

Prioridades? Saudades

Para Natália, tanto a educação linguística quanto a prática docente e a formação de professores e de estudantes “devem ser sempre embasadas em pesquisas realizadas por especialistas nos estudos da linguagem, preservando o respeito às diferentes expressões identitárias dos seres humanos”. Ela também afirma que o ensino de língua portuguesa nas escolas de Rondônia se beneficiaria muito mais com medidas como o estímulo à formação continuada dos profissionais que atuam no ensino básico, com a redução do número de alunos por sala de aula, aumento salarial, democratização do acesso à internet, entre outras mudanças necessárias, porém negligenciadas pela gestão rondoniense. 

Mestra em Letras e doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa, Josy Maria. (Reprodução/Acervo pessoal)

Mestra em Letras e doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa, Josy Maria também concorda com a falta de prioridades e a preocupação injustificável dos parlamentares com questões que dizem respeito à individualidade, neste caso, sobre como as pessoas gostam de ser tratadas.

Discussão e ensino sem censura

Josy Maria celebra a resposta do STF, por meio de Fachin, a Eyder Brasil. Para ela, o posicionamento foi à altura da tentativa de censura do Legislativo que, por meio da lei, promovia a perpetuação da invisibilidade de uma população já tão atacada e incompreendida. 

“A decisão do ministro é acertada. E o é não apenas porque continua a garantir que os professores possam desenvolver o seu trabalho com liberdade de cátedra, como também que esses profissionais não sejam punidos por fazê-lo.  O ganho para os alunos é imenso, uma vez que, conhecendo a diversidade da língua, eles podem fazer uso dessa diversidade, se assim o desejarem”, disse à reportagem. “No Brasil, se produziu um senso comum curioso sobre a língua: criou-se o mito de que português é difícil e de que a língua seria um objeto sólido, plano, cuja descrição completa estaria já toda repertoriada por gramáticas e dicionários. O negacionismo existe também em relação à língua e em terras “planas brasileiras” ele esteve sempre ali, dormente, à espera de germinar como temos visto acontecer”, acrescentou.

“A liberdade de expressão é direito consagrado na Norma Constitucional Brasileira e é na escola que essa liberdade nasce e é também no espaço escolar que as pessoas devem aprender a usar a liberdade para garantir a dignidade, a cidadania e o respeito a todas as diversidades. Nesse sentido, proibir o debate de qualquer diversidade linguística é uma forma de censura”, continuou a ativista e especialista. 

Vincent Abiorana vai além, e traça as perspectivas que poderiam transcender à permanência do vigor da lei. “A censura, por si só, já é grave, né, e contra a pluralidade, a democracia e o respeito às diferenças. Essa censura ela não é só de: ‘você não pode usar uma palavra’, ‘você não pode falar ile’, ‘você não pode falar delu’, mas, também, como consequência, tem uma proibição na ideia, na visão de mundo de que as pessoas não-binárias não podem existir. Então, a lei traz uma censura, uma proibição de falar e a consequência posterior seria de uma proibição de ser quem a gente é, contribuindo para que a escola não seja o espaço democrático e plural que ela deveria ser”, avaliou.  

Psicólogue e professore universitárie, Vincent comemora a sensação de alívio, mas não desliga o sentido de alerta. (Acervo pessoal/Reprodução)

Lugar no mundo e segurança coletiva

Abiorana também convida a refletir sobre o leque trazido pela discussão e implementação da linguagem neutra como apenas uma das formas de se comunicar com o outro de maneira inclusiva, promovendo respeito e, acima de tudo, segurança. 

A linguagem neutra traz uma contribuição muito robusta para a comunidade LGBTQIA+, que é de acolher a gente, de então reconhecer quem a gente é na nossa identidade de gênero, nas nossas formas de se perceber e de estar no mundo. Quando a linguagem neutra é colocada em circulação, quando ela está nas escolas, está nos espaços públicos, enfim, no nosso cotidiano, ela não traz essa contribuição só para a população LGBTQIA+, mas para toda a sociedade, porque, então, ela faz com que a gente repense as formas de comunicação para pessoas com deficiência, para as pessoas que são transgênero, também traz contribuições para que a gente não pense numa linguagem onde generalize só no masculino e, por isso, seja sexista”, afirmou.

“Para a comunidade LGBTQIA+, ela ainda tem um plus de contribuir com a segurança, com a nossa saúde mental (…) a gente começa a ter dimensão de que a nossa forma de estar no mundo está sendo melhor acolhida, então isso vai contribuindo, a longo prazo, para a diminuição das violências físicas, emocionais, morais e patrimoniais contra a população LGBTQIA+”, complementou. 

“A decisão do STF, apesar de ser extremamente benéfica e de trazer certo alívio para a comunidade, pelo histórico de conquistas dos Direitos Humanos, a gente tem que continuar em alerta, porque na história dos Direitos Humanos, a gente vai ter conquistas e retrocessos. Então, a sensação que eu tenho, o sentimento que eu tenho e a análise, também, é que a gente comemore e que a gente também reconheça esse novo momento”, finalizou elu.