Guerra na Ucrânia expõe racismo, intolerância e xenofobia aos refugiados

Pessoas em fuga da violência na Ucrânia, na fronteira pedonal de Medyka, na região leste da Polônia, em 27 de fevereiro de 2022. (WOJTEK RADWANSKI/AFP/Getty Images)

03 de março de 2022

13:03

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium

MANAUS – A invasão russa à Ucrânia chegou ao seu oitavo dia nesta quinta-feira, 3, com o número assustador de um milhão de refugiados, segundo informações da Agência da ONU para Refugiados (Acnur). O desespero expôs o racismo e a xenofobia na Europa, onde pessoas negras têm enfrentado barreiras impostas tanto pelas instituições governamentais de assistência quanto pela mídia.

Com a urgência e rapidez das notícias veiculadas nas redes sociais, principalmente no Twitter, residentes do país europeu e até mesmo autoridades usam o microblog para se manifestar sobre o conflito. É por lá que muitos refugiados relatam episódios de segregação racial ou xenofobia no momento de tentar deixar o país.

Um homem identificado como Alexander Somto publicou um vídeo, segundo seu próprio relato, gravado na fronteira da Ucrânia com a Polônia. Nas imagens, viaturas bloqueiam uma estrada com policiais armados e jovens aparecem nos vídeos gritando e avisando que são apenas estudantes.

“Veja como eles estão ameaçando atirar em nós! Estamos atualmente na fronteira Ucrânia-Polônia. Sua polícia e Exército se recusaram a deixar os africanos atravessarem, eles só permitem ucranianos. Alguns dormiram aqui por 2 dias sob este frio escaldante”, diz Alexander Somto na publicação.

Outro relato foi feito em entrevista à CNN nessa quarta-feira, 2, também repercutiu nas redes sociais. Nele, uma aluna africana de Medicina afirmou que ela e outros estrangeiros receberam ordens para sair de um carro público, em um posto de controle entre a Ucrânia e a fronteira da Polônia, permanecendo no transporte apenas cidadãos ucranianos a bordo. “Eles disseram que se você é negro, você deve andar”, afirmou.

Na mídia

Os comentários de alguns jornalistas, ao relatarem o conflito, exibiu uma “guerra de narrativas” que se criou sobre pessoas brancas e não-brancas. Um dos exemplos que mais circularam nas redes sociais foi a fala de Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News. Na última sexta-feira, 25, o jornalista disse que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia não era esperada por se tratarem de países europeus.

“Esse não é um lugar, com todo respeito, como Iraque, ou Afeganistão, que tem visto conflitos por décadas. Essa é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia. Preciso escolher essas palavras com cuidado, também. É uma cidade que você não espera que isso aconteça”, comenta o jornalista ao vivo. Horas após a transmissão, D’Agata pediu desculpas em suas redes sociais.

Também no dia 26, o jornal The Telegraph publicou um artigo do jornalista Daniel Hannan, no qual ele escreveu, em um trecho, que “eles se parecem tanto com a gente”. “Isso é o que faz ser tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Sua população assiste Netflix e tem contas no Instagram, votam em eleições livres e leem jornais não censurados. A guerra não é mais uma coisa que atinge populações empobrecidas e remotas. Pode acontecer com qualquer um”, afirmou.

Discriminação

O mestre em História e estudioso de relações étnico-raciais Juarez Silva Jr. indica haver vários pontos a serem observados quando se fala de racismo. O primeiro é o de “marca”, quando o preconceito e discriminação acontece a partir da aparência física, o fenótipo, que identifica facilmente o discriminado como “diferente” e com associação negativa histórica e cultural, como é o caso do racismo clássico nas Américas.

O segundo é a origem, quando não há muita “marca” fenotípica, mas há outros elementos especialmente culturais, como língua, religião, tradições culturais, que fazem a identificação do “diferente”. Em ambos os casos, segundo Juarez Silva Jr., há uma associação do diferente como “estrangeiro, intruso ou invasor”. Nesse caso, a discriminação é mais nítida e chamada de xenofobia.

“Os brasileiros, por exemplo, estão mais acostumados com o racismo de marca, por isso muitos brancos ficam surpresos ao serem às vezes discriminados em países estrangeiros, porque não é comum por aqui, mas muito comum na Europa e América do Norte, por exemplo”, exemplifica ele.

“A questão étnica também é fator preponderante nos conflitos mundo afora. Grupos étnicos são grupos de cultura mais do que de fenótipo. No caso da região do conflito, o grupo preponderante é das línguas eslavas, ou seja, tem grande parte da história e cultura compartilhada. Daí termos tantas guerras na Europa e Eurásia. O interessante é que normalmente o público externo enxerga essas diferenças nesses contextos, mas quando se trata de outros continentes com África, por exemplo, enxergam todos como uma ‘coisa só’ e até falam em ‘irmãos matando irmãos’, como se não fosse o mesmo que sempre aconteceu nas ‘guerras brancas’, guerras étnicas”, questiona ele.

O mestre em História e estudioso de relações étnico-raciais Juarez Silva Jr. (Pedro Gabriel)

Direito à igualdade

A União Africana, organização que reúne os 55 países do continente, condenou publicamente o tratamento que vem sendo dispensado aos cidadãos de países africanos que estão na Ucrânia. “Relatos de que africanos são selecionados para tratamento dissimilar inaceitável são chocantemente racistas e uma violação da lei internacional”, diz o comunicado assinado por Macky Sall, presidente da entidade, também presidente do Senegal, e por Moussa Faki Mahamat, presidente da Comissão da União Africana e ex-primeiro-ministro do Chade.