Indígenas que vivem em áreas urbanas de Manaus lutam por prioridade na imunização contra Covid-19

Família de mulheres da etnia indígena Aripuanã em Manaus anseia por vacina (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

09 de abril de 2021

19:04

Alessandra Leite

MANAUS – Quase um mês após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinar a vacinação contra a Covid-19 de todos os povos indígenas, incluindo os que moram nas cidades ou, ainda, os que não estão em áreas demarcadas. Lideranças em Manaus relatam nesta sexta-feira, 9, que seguem na luta para obter a prioridade.

À frente da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), a líder Marcivana Sateré falou à equipe da CENARIUM sobre o embate que vem travando na defesa dos direitos dessas populações, comprovadamente mais vulneráveis a doenças respiratórias. Em um ano de pandemia, o novo coronavírus já matou mais de 1.020 indígenas em todo o Brasil.

De acordo com Marcivana, ao menos sete mil cestas básicas já foram distribuídas durante todo o período da pandemia, cujo marco inicial se deu em março de 2020. “Nós estamos fazendo o papel do poder público, ajudando as famílias indígenas que foram tão afetadas por essa pandemia. Com essas cestas, nós já levamos esperança e alguma segurança alimentar para 226 famílias no Rio Cueiras e Baixo Rio Negro, quatro vezes, desde o início de toda essa calamidade”, afirmou.

Família da etnia Aripuanã, moradora no bairro do Mauzinho aguarda vacinação em Manaus. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Cobrança

A líder sateré relata a preocupação devido à grande cobrança recebida pela Copime em busca da ajuda humanitária. Se mantendo com recursos de doações, a coordenação conta, sobretudo, com envio de aportes financeiros de organismos internacionais, como a Partage de Luxemburgo  e a Manos Unidas da Espanha.

Um suporte da igreja católica na capital é feita por meio da Cáritas Arquidiocese de Manaus. “O que é contraditório é que grande parte de nós indígenas somos evangélicos, mas o apoio maior vem da igreja católica. As outras igrejas trabalham mais o lado espiritual. A Coiab também é uma das nossas grandes parceiras”, disse, referindo-se à Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira.

Um dos gargalos para que todas as famílias sejam contempladas pelas ações de organizações do Poder Público como a Fundação Estadual do Índio (FEI) e Fundação Nacional do Índio (Funai), conforme a coordenadora Marcivana Sateré, é a exigência do Rani (Registro Administrativo de Nascimento Indígena), que muitos não possuem.

“Nós doamos acreditando na palavra do cacique, da liderança, em relação à quantidade de famílias necessitadas. Como não estão fazendo o Censo também devido à pandemia, tudo se complicou ainda mais. A liderança que recebe os mantimentos enviados pela Copime assinam um termo de doação contendo dados como o nome, o CPF, a etnia e quantas pessoas vivem na casa”, explicou.

A família composta em sua maioria por mulheres compõe a lista de espera da vacinação. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Logística

Além das cestas básicas, a Copime também precisa de recursos para custear a logística, como o aluguel de embarcação, o combustível, dentre outras despesas. Um dos parceiros que contribui com essa parte da ação humanitária, de acordo com Marcivana, é o Greenpeace. Para a líder sateré, a situação é crítica em muitos sentidos, especialmente porque os voluntários também são indígenas e estão na linha de frente desde 2020, contudo, ainda não foram imunizados.

“Precisamos de todo tipo de ajuda, desde carregar as cestas no ombro até chegar às comunidades. Todos os voluntários são indígenas. É um laço de solidariedade que se fortalece entre nós. Não levamos só os alimentos, dentro das cestas também carregamos amor e esperança. Muitos dos nossos indígenas foram obrigados a trocar a pesca pelas doações”, relatou.

Indígenas recorrem à Copime para receber ajuda humanitária durante a pandemia do novo coronavírus. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Na avaliação da coordenadora-geral da Copime, a Covid-19 escancarou muitos dos flagelos que a população indígena vem sofrendo há muitos anos. “A pandemia trouxe muita coisa ruim, mas, por outro lado, nos mostra que precisamos refletir sobre o que é da competência de cada um, pensar a realidade de cada comunidade. Nós nos colocamos na linha de frente mesmo com medo, porque a fome e a doença não esperam. Se não tivéssemos tomado essa atitude, a mortalidade por Covid-19 teria sido muito maior entre nós”, ponderou.

Trabalho informal

Marcivana Sateré e o coordenador-tesoureiro da Copime, Ludimar Kokama, ressaltam o fato de que a maioria dos indígenas em Manaus trabalha no mercado informal, seja com venda de artesanato, como diaristas ou ainda como mestres de obras em construções particulares. “Por conta dessa realidade, a pandemia atingiu drasticamente a economia indígena. Grande parte das nossas lideranças indígenas vive em condição de informalidade”, relatam.

Um suporte da igreja católica na capital é feita por meio da Cáritas Arquidiocese de Manaus. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Para a líder indígena e artesã Maria do Carmo Trindade, da etnia Kotiria, também conhecida como Wanana ou Wanano, a ajuda recebida via Copime tem sido fundamental para garantir alguma segurança alimentar em sua comunidade, situada no Ramal Boca da Onça, localizada no km 121 da BR-174.

Com o meio de subsistência comprometido devido às restrições impostas pelas recomendações sanitárias para reduzir o contágio pelo novo coronavírus, Maria do Carmo relata que já recebeu cestas básicas três vezes, em um ano de pandemia. “Não temos como trabalhar no turismo neste momento, então só podemos contar com esse tipo de apoio. São 12 famílias em nossa comunidade, que não passaram mais privações por termos recebido ajuda humanitária, diz a artesã.

Direito Universal

Para tentar garantir o direito à vacina para os povos indígenas, a Copime faz uma reunião na manhã desta sexta-feira, 9, em sua sede, situada à avenida Joaquim Nabuco, 1.023, no prédio do Centro de Formação da Cáritas Arquidiocesana de Manaus.

No encontro, segundo a líder Marcivana Sateré, devem estar presentes representantes do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) , da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), Funai, Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM) e das comunidades indígenas.

“Nós indígenas sempre ficamos de fora do Plano Nacional de Imunização (PNI). Nas aldeias estão todos sendo imunizados a partir dos 18 anos, o problema está aqui na cidade. Quem mora em Manaus não tem prioridade e tem de esperar o calendário geral da população, por faixa etária e comorbidades”, relatou.

A Copime precisa de recursos para custear a logística como o aluguel de embarcação e combustível. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Além de todo o descumprimento de direitos já mencionado, a líder da Copime chama a atenção para o fato das sequelas da Covid-19 e a desassistência sofrida pelas famílias indígenas de um modo geral. “Muitos aldeados estão vindo para Manaus tratar as sequelas e recebem abrigos nas casas das famílias de nossas comunidades. Está muito alto o índice de problemas cardíacos, diabetes, além de depressão e outros transtornos mentais”, disse.

O adoecimento pelas sequelas é grande. Toda morte para nós é grande. Temos de lidar com o luto e seguir na linha de frente. Famílias indígenas também estão sendo devastadas. Se vier uma terceira onda, quem de nós será a próxima vítima?”, questiona a coordenadora, acrescentando ser um cenário de muitas incertezas, mas também de muita coragem. “Não podemos simplesmente cruzar os braços e esperar que a pandemia acabe ou mesmo a vacina para agirmos. Já nos basta a omissão do Estado”, finalizou.

MPF-AM recomenda a inclusão

O MPF-AM recomendou a inclusão de todos os povos indígenas do Amazonas no grupo prioritário para a vacinação contra a Covid-19. Conforme a recomendação, o MPF-AM levou em consideração diversos documentos encaminhados à Procuradoria-Geral da República.

O assunto, de acordo com o MPF-AM, está sendo tratado por uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), no Supremo Tribunal Federal (STF), que teve decisão proferida pelo ministro Luís Roberto Barroso em 16 de março de 2021.

“Diante da decisão e após reunião com diversas entidades envolvidas na temática, incluindo a Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas, foram apresentados embargos de declaração (recurso), pedindo esclarecimentos do ministro sobre a determinação judicial. Os embargos ainda aguardam a análise do ministro”, diz trecho da recomendação.

O MPF-AM informou que, de forma alternativa, tem estabelecido tratativas com o Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conasems) para buscar a solução da questão fora do âmbito judicial. “Já está agendada reunião para discussão de critérios de vacinação e encaminhamento do tema, com a participação do Estado do Amazonas, do Município de Manaus e do movimento indígena de Manaus. Também estão sendo realizadas, em paralelo, interlocuções com a Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas para debater formas de garantir a proteção aos direitos dos indígenas”, de acordo com o documento.