Jornal ‘The Washington Post’ estampa luta por terras em comunidades quilombolas no Brasil

Ampliação de centro espacial pode afetar mais de 2.100 mil pessoas. (Reprodução/Agência Brasil)

01 de abril de 2021

18:04

Bruno Pacheco

MANAUS – Um dos periódicos mais importantes do mundo, “The Washington Post”, estampou na capa do jornal impresso, nesta semana, a luta de comunidades quilombolas pressionadas a saírem do território onde vivem, em Alcântara, no Maranhão. Por conta do acordo assinado em 2019 entre Brasil e os Estados Unidos (EUA), para ampliar o centro espacial na região, que pode resultar na remoção de cerca de 2.100 mil pessoas nas terras.

Os quilombolas são os descendentes de africanos escravizados e de acordo com o “Washington Post”, que viajou para a aldeia de Mamuna, em Alcântara, para conversar com os moradores. A região se encontra no que a indústria aeroespacial global considera como alguns dos imóveis mais valiosos do planeta. Alcântara fica a menos de 200 milhas da linha de equador, faz com que ela seja um dos lugares mais fáceis da Terra para lançar satélites em órbita.

Uma das histórias narradas pelo tabloide é a da quilombola Maria José Lima Pinheiro, de 48 anos de idade, que faz relatos sobre a exploração espacial, escravidão e a destruição iminente. Com a chegada da “Era Espacial”, as quase 2.100 pessoas que compõem as comunidades em terras fundadas por africanos, escravos libertados e fugitivos podem ser realocadas.

“‘Para onde iremos?’, perguntou Pinheiro, ao jornal. Ela vive em Mamuna e vem liderando a resistência contra a base de lançamento. Em entrevista ao ‘Washington Post‘, a quilombola destaca que acorda todos os dias com medo de que sua comunidade seja realocada do lar que, para ela, é uma “estrada de terra sinuosa ladeada por casas de telhado de colmo”, em meio ao silêncio da floresta e o jantar de pesca fora do mar, sendo a única vida que ela sempre quis. “O que nós vamos fazer?”, questiona, sobre a ameaça de remoção das comunidades.

O acordo

Chamado de Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), a medida foi assinada em março de 2019 pelo então presidente americano Donald Trump e, na parte do Brasil, pelo presidente Jair Bolsonaro e prevê que os Estados Unidos usem comercialmente a base espacial, o que expandiria o território do Centro de Lançamentos de Alcântara, afetando as famílias que vivem na região desde o século XVII, há 300 anos.

Apesar do risco de remoção das comunidades, o periódico destaca que o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil, Marcos Pontes, declarou que não há planos de realocar famílias “agora”, mas que se chegar a hora de removê-las, ele previu, elas irão de boa vontade. “Eles verão o desenvolvimento chegando, o desenvolvimento real”, disse ele ao “The Washington Post”. “Toda a resistência, isso vai desaparecer gradualmente”, continuou.

Ao impresso, o Departamento de Estado dos EUA declarou que o acordo “não discute, ou de forma alguma endossa, os planos do Brasil para as comunidades de Alcântara ou Quilombola”. “Encorajamos os quilombolas e os líderes do governo brasileiro a continuarem com diálogos construtivos para resolver quaisquer preocupações”, salientou a pasta.

Solução

A base de Alcântara é como a “solução” do governo americano, que se tornou dependente da base aérea de Patrick e do Cabo Canaveral, na ilha-barreira da Flórida, cuja região é castigada por tempestades e ameaçada pela elevação do mar. Geograficamente, relembra o jornal, Alcântara é dita como quase ideal. Decolar perto do equador é uma vantagem para a tecnologia espacial, por conta do menor gasto que os foguetes teriam com combustível e transporte de cargas. “Um lugar perfeito”, explanou Trae York, ex-diretor das forças espaciais do Comando Sul dos EUA, em entrevista ao “The Post”.

Alcântara

A base de Alcântara foi inaugurada em 1983 como um “sonho brasileiro” para conquistar o espaço. Para o programa, no entanto, era necessário a ocupação territorial, o que afetou a vida de centenas de famílias quilombolas que moravam na área. Em 22 de agosto de 2003, no entanto, um acidente que deixou 21 pessoas mortas no local interrompeu as atividades do Centro de Lançamentos.

À época, o foguete Veículo Lançador de Satélites (VLS) foi acionado antes do tempo e ficou pronto para a partida. Com a ignição prematura do VLS, a torre explodiu e matou os trabalhadores que estavam no local. Em novembro de 2020, um foguete de treinamento pegou fogo na base de Alcântara, após ter o lançamento interrompido. Ninguém ficou ferido e o incêndio foi classificado como pequeno pelas autoridades.

Drama de Alcântara

Para a antropóloga Fabiane Vinente, o drama das famílias da base de Alcântara é o mesmo de inúmeras populações tradicionais do Brasil afora que sofrem com as ações do Estado. “É o drama das pessoas que usam, vivem e têm uma relação diferente na terra e que o Estado atropela, por meio das suas ações de expansão, sem se preocupar com a qualidade de vida dessas pessoas e para onde elas vão. É muito mais do que um pedaço de terra, é a vida daquelas pessoas que estão ali”, enfatizou.

A remoção dos quilombos da região em que se encontra a base de Alcântara resultaria na perda das referências históricas das comunidades. “Todas as referências de vida delas estão ali. É muito brutal e é muito triste sabermos, enquanto cidadã, que o Estado brasileiro, que pela Constituição deveria proteger essas pessoas, na verdade as estigmatizam dessa forma tão cruel, baixa e triste”, ponderou.

Fabiane criticou que o acordo estabelecido entre os governos brasileiro e americano desconhece o modo de vida dos povos quilombolas. “É extremamente triste pensar nessa possibilidade de remoção. É mais uma pedra que se coloca em cima da constituição brasileira. Isso não tem nada a ver com os princípios que a gente estabelece como desejados para este País e é uma vergonha termos uma repercussão internacional em relação a mais esse caso de abuso contra as populações tradicionais”, concluiu.

Edição: Carolina Givoni