Movimentação de isolados no Vale do Javari sinaliza ‘pedido de socorro’, indicam especialistas

A AGÊNCIA AMAZÔNIA apurou que o grupo permanece realizando a mesma movimentação, na região da aldeia São Joaquim, desde que foram vistos na última segunda-feira (Lalo de Almeida/Folhapress)

04 de agosto de 2022

11:08

Iury Lima – Da Agência Amazônia

VILHENA (RO) – O comportamento de um grupo de indígenas em isolamento voluntário no território do Vale do Javari, observado por habitantes de uma aldeia do Povo Marubo – etnia que se relaciona com grupos externos, incluindo a sociedade não indígena -,  acendeu o alerta para lideranças locais e pode sinalizar, de acordo com especialistas consultados pela AGÊNCIA AMAZÔNIA, uma tentativa de contato para pedir socorro; situação que vem sendo ignorada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) desde a última segunda-feira, 1º de agosto.

Naquele dia, ao menos 30 pessoas do grupo de isolados foram vistas nas proximidades da aldeia São Joaquim, uma das 70 comunidades Marubo espalhadas pela Terra Indígena (TI). Eles estavam do outro lado, em uma das margens do Rio Ituí, “gritando e muito agitados”, segundo a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Sem contar as comunidades isoladas, a TI tem mais de 70 aldeias (Cimi/Reprodução)

‘Pedido de ajuda’

A AGÊNCIA AMAZÔNIA apurou que o grupo permanece realizando a mesma movimentação, na região da aldeia São Joaquim, desde que foram vistos na última segunda-feira, 1º. Apesar de avistados pela primeira vez, por uma enfermeira que atua na região, a confirmação do aparecimento e da movimentação veio apenas um dia depois, por meio de nota da Univaja. No primeiro momento, as lideranças temiam o início de um conflito, o que foi descartado pela organização. 

Como não se sabe ainda o motivo da aproximação, especialistas avaliam que o comportamento pode indicar a existência de uma emergência de saúde ou a busca por algum tipo de ajuda. “É provável que estejam [autores de crimes ambientais] invadindo a área deles e que exista alguma ameaça à vida deles, caso contrário, não sairiam por aí, assim”, sugeriu à reportagem a indigenista e presidente da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Ivaneide Bandeira Cardozo. “Pode estar tendo alguma emergência e os indígenas estão saindo, buscando apoio”, complementou. 

Ivaneide Cardozo relaciona aproximação dos isolados com a ocorrência de crimes ambientais dentro da reserva (Gabriel Uchida/Kanindé/Reprodução)

Quem concorda com a hipótese é o assessor jurídico da Univaja, Eliésio Marubo. “Pode ser, também, uma pessoa doente”, diz ele. “Pode ser para salvar alguém de alguma coisa (…) tudo é possível a partir desse ‘primeiro contato’ que estão fazendo”, detalhou o advogado, observando, em seguida, que a organização ainda precisa compreender melhor a situação.

Advogado da Univaja, Eliésio Marubo diz que a organização esperava iniciativa da Funai (Agência Senado/Reprodução)

Crime organizado

Também há a suspeita de que a área habitada por este grupo de indígenas esteja sob ataque do crime organizado, que se alastra pela Região Amazônica e migra para o restante do País, numa cadeia de economias ilegais, que vão da pesca proibida e tráfico de drogas à lavagem de dinheiro, além da exposição a doenças levadas por invasores.

“Eles podem estar sendo contaminados pelo mercúrio e outras substâncias utilizadas no garimpo, que também é muito frequente no Vale do Javari”, apontou o advogado especialista em Direito Ambiental e Indígena, Ramires Andrade. “Pode ser uma situação de pedido de ajuda, de socorro, de doença e de contaminação que pode, inclusive, levar à extinção desses povos, pois eles têm uma imunidade muito menor a certos vírus e doenças”, continuou Andrade. 

“Com certeza, a invasão da Terra indígena, a extração ilegal de madeira, a grilagem, a pesca e a caça ilegais, muito recorrentes no Vale do Javari, contribuem para esse eventual contato dos indígenas isolados, colocando em risco toda essa sociedade”, disse ainda o especialista. 

Para o especialista em Direito Indígena Ramires Andrade, é preciso promover a assistência primando pelo respeito à decisão dos indígenas de se manter isolados no território (Acervo Pessoal/Reprodução)

Cadê a Funai?

Apesar de acionada, a Fundação Nacional do Índio (Funai) ainda não compareceu e, por isso, a Univaja está monitorando, por contra própria, a presença dos isolados. A organização não governamental já enviou uma equipe para a região, que vai fazer uma aproximação e repassar informações – tarefa que deve levar pelo menos dois dias. 

Uma vez no meio da floresta, sem sinal de celular e internet, a comunicação será feita por telefone via satélite. A região também é de difícil acesso: são quatro dias de barco até a cidade de Atalaia do Norte, subindo o Rio Itacoaí. Numa viagem aérea, o percurso fica menor; cerca de uma hora e meia de helicóptero. Se a Funai tivesse respondido logo que a Univaja e a aldeia São Joaquim pediram apoio, a ajuda já teria chegado. 

“Nós esperávamos que a Funai encabeçasse esse diálogo, mas infelizmente ainda não tivemos essa resposta”, contou Eliésio Marubo à AGÊNCIA AMAZÔNIA. “Entendemos que é uma forma própria e particular da atualidade da Funai, trabalhar dessa maneira”, criticou o assessor jurídico da Univaja.

Equipes da Funai também seriam necessárias para intermediar e realizar uma ação de assistência às necessidades dos isolados, observa Cardozo. “As frentes de contato da Funai têm experiência o suficiente para saber como proceder com toda a proteção da região, todo o entorno, e como afastar as pessoas, sejam indígenas ou não indígenas”, destacou a indigenista.

A maior concentração de povo isolados está no Vale do Javari: 19 grupos, pelas contas da Funai (Funai/Reprodução)

Além disso, “existem protocolos a serem cumpridos em situação de contato voluntário”, lembra Ramires Andrade. “Caso haja um contato voluntário, uma manifestação de socorro ou um pedido de ajuda, a Funai deve prestar essa assistência e procurar, dentro do protocolo, outras etnias que já mantêm contato com a sociedade não indígena, que tenha o mesmo grupo linguístico, para tentar uma comunicação com os isolados, por exemplo”, explicou o especialista em Direito Indígena. 

O que diz a Funai

Em resposta à AGÊNCIA AMAZÔNIA, a Funai disse que “está acompanhando o caso reportado desde os primeiros relatos”, mas reconheceu que ainda não mandou equipes para a região.

Questionado sobre a forma como prestará apoio, o órgão respondeu que vai atuar de forma conjunta com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), por meio da Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari (CFPE-VJ) “com o objetivo, em um primeiro momento, de qualificar as informações reportadas pela Aldeia São Joaquim”.

“As informações coletadas em campo subsidiarão a atualização imediata do Plano de Contingência para Situação de Contato, documento que norteará as ações conjuntas que deverão ser tomadas”, informou a Funai, fazendo a ressalva sobre a realização de contato apenas em situação de extrema necessidade. O órgão diz estar “providenciando a entrada imediata”.

Proteção, já!

A Terra Indígena do Vale do Javari, com mais de 8 milhões de hectares demarcados, é a segunda maior do Brasil, atrás apenas do território Yanomami, entre o Amazonas e Roraima. Nela, vivem mais de 6 mil pessoas. A TI é, também, onde está a maior concentração de povos isolados, no Brasil: pelos menos 19 grupos com idiomas e costumes completamente desconhecidos. Sem contar as comunidades isoladas, a TI tem mais de 70 aldeias.

A Constituição Federal reconhece, no Artigo 231, os grupos isolados como indígenas e, portanto, todos os direitos daí decorrentes, como as peculiaridades culturais, as identidades e as formas de organização dessas populações, por exemplo”, ressalta Ramires Andrade. “O Estado tem uma obrigação com esses indígenas, também”, completou.

“Esses indígenas optaram por estar isolados porque, certamente, eles já tiveram algum contato com outra sociedade e deve ter sido desastroso. Essa criminalidade, como acontece, por exemplo, no território Uru-Eu-Wau-Wau, aqui em Rondônia, é que os expulsa os indígenas do próprio território”, lamentou Ramires. “O papel da Funai é proteger esses indígenas, pois, com toda evidência, eles têm, ali, uma situação de vulnerabilidade”, concluiu o especialista.

A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo ARNS expressou preocupação. “Trata-se de um grupo indígena isolado, de língua não identificada, que visivelmente quer se comunicar”, disse em nota.

A organização, formada por juristas, ambientalistas, jornalistas e demais defensores dos direitos humanos, cobrou, ainda, providências urgentes para o caso. “É urgente, que a Funai e a Sesai desloquem para a região uma expedição com indigenistas e equipe médica experientes, atuando dentro de um plano de contingência específico e atualizado para o Vale do Javari. Pedimos, ainda, que os integrantes da equipe médica tenham experiência prévia com os protocolos de saúde em situações de primeiro contato com indígenas isolados (…) Sem proteção vacinal imediata e adequada, há risco de mortes em série nessa população, podendo levar até à sua extinção”, alertou a entidade.