No AM, Justiça manda voltar ensino sobre Diversidade; matérias da CENARIUM auxiliaram petição

Do Fórum de Manaus, o juiz plantonista Cássio Borges decidiu manter o debate nas escolas sobre diferenças religiosas, étnicas e de identidade de gênero (TJAM)

21 de março de 2021

21:03

Paula Litaiff – Da Revista Cenarium

MANAUS – Considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no ano passado, a medida da Prefeitura de Manaus para impedir o ensino sobre identidade de gênero, estudos étnico-raciais e de diversidade religiosa nas escolas foi barrada pela Justiça do Amazonas na tarde deste domingo, 21.  A REVISTA CENARIUM foi a primeira a levantar o debate sobre o assunto.

O juiz plantonista Cássio André Borges dos Santos concedeu uma liminar revogando a Resolução 054/2021 do Conselho Municipal de Educação de Manaus (CME), vinculado à Secretaria Municipal de Educação (Semed), que tornou sem efeito a Resolução 091/2020, na qual fomentava o debate sobre os temas relacionados à Diversidade entre estudantes.

Borges atendeu ao pedido de duas instituições não governamentais, a Associação de Desenvolvimento Sociocultural Toy Badé (ATB), representada pela advogada Ana Carolina Amaral de Messias, e a Associação Nossa Senhora da Conceição, que tem como representante a advogada Luciana dos Santos Silva.

Na petição contra a Semed, as advogadas se embasam, principalmente, em dois instrumentos: a Constituição Federal (art. 206, II e III, CF/88) e a jurisprudência do STF (ADPF 457). “Não há qualquer dúvida de que a determinação da Secretaria Municipal de Educação de Manaus é inconstitucional”, aponta Luciana.

CF, ADPF e LDB

A Constituição garante a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, além de prever o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

Especificamente sobre a questão de diversidade sexual e de gênero, o STF julgou procedente, por unanimidade, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em 29 de abril de 2020, que tornam inconstitucionais leis municipais que proíbem ensino sobre questões de gênero.

“O relator da ADPF 457, ministro Alexandre de Moraes, inclusive, citou em seu voto que a jurisprudência do STF reconhece a competência privativa da União para edição de normas gerais em matéria de educação e a competência concorrente dos Estados para complementar a legislação federal”, explicou Ana Carolina.

Decisão do STF sobre a interferência de municípios no ensino básico (STF)

Em sua análise, Alexandre de Moraes detalha que: “A eventual necessidade de suplementação da legislação federal com vistas à regulamentação de interesse local não justifica a proibição de conteúdo pedagógico não correspondente às diretrizes fixadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei 9.394/1996)”.

Ao acatar a petição das associações contra a Semed, o juiz Cássio Borges, também, cita a LDB e o retrocesso que a censura dos temas relacionados à Diversidade pode gerar ao ensino público municipal em Manaus.

“A revogação da Resolução 091/2020, como se vê, ainda que sem grande esforço argumentativo, representa retrocesso ou mesmo impedimento à continuidade do desenvolvimento de atividades afirmativas em descompasso com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, diz o magistrado.

Despacho da Justiça do Amazonas sobre estudos de Diversidade nas escolas (TJAM)

Vence a sociedade

O juiz explica ainda que a urgência em garantir a manutenção dos estudos nas escolas sobre diversidade o respalda pela decisão antecipada. “Não vejo óbice à prestação da tutela de urgência, notadamente pela necessidade de continuidade de estudos dirigidos à educação para as relações étnico-raciais, diversidade sexual e gênero, e diversidade religiosa”, conclui.

As advogadas Luciana Santos e Ana Carolina Amaral assinaram a petição para retornar o ensino sobre temas de Diversidade na Semed (Arquivo Pessoal)

Para a advogada Luciana Santos, a decisão da Justiça do Amazonas assegura a efetivação de direitos que são fruto de muita luta dos movimentos sociais em busca da igualdade e respeito às diferenças. 

“São direitos constitucionais e, como tais, devem ser respeitados. Não se pode admitir retrocessos nesses temas para satisfazer ideologias de grupos restritos. Vence a comunidade escolar, vence a sociedade”, ponderou Luciana.

Pedido pessoal e político

A petição que resultou na decisão para retomar os estudos sobre identidade de gênero nas escolas municipais de Manaus contou com auxílio da REVISTA CENARIUM, que, em sua editoria DIVERSIDADE, apontou ligação política na determinação da Semed.

O secretário da Semed, Pauderney Avelino, recebeu do vereador evangélico Raiff Matos o pedido para intervir no ensino público em Manaus (CMM)

Segundo o presidente do Conselho Municipal de Educação, Thiago Lima e Silva, o pedido para revogar os estudos sobre relações étnico-raciais, diferenças religiosas e identidade de gênero partiu de um requerimento do vereador Raiff Matos (Democracia Cristã).

CENARIUM foi citada em petição à Justiça (TJAM)

Da bancada evangélica governista da Câmara Municipal de Manaus (CMM), Raiff Matos fez o pedido com base em sua “ideologia pessoal”, sem a utilização de qualquer argumento técnico ou científico.

Branco e empresário

Com 0,47% do eleitorado de Manaus (4.621 votos) na eleição do ano passado, o vereador Raiff Matos – que se identificou na Justiça Eleitoral como branco e empresário – conseguiu intervir nas diretrizes do ensino sobre relações étnico-raciais em uma capital com mais de 2 milhões de pessoas, sendo mais da metade formada por negros, pardos e indígenas.

Dados de Raiff Matos na Justiça Eleitoral (TSE)

À CENARIUM, o vereador justificou o pedido à Secretaria Municipal de Educação dizendo ser “contrário aos termos da resolução (que fomenta o debate sobre Diversidade) por, segundo ele, considerar “o assunto delicado para ser transmitido aos estudantes”.

Desconsiderando o entendimento do STF que impede o município de legislar sobre os temas que o vereador, pessoalmente, discorda, Raiff Matos alegou ainda que para debater os assuntos em sala de aula é necessário “um trabalho prévio de qualificação das escolas”.

No site da CMM, o empresário não tem registros de projetos de leis protocolados. A reportagem encontrou no mesmo site uma matéria jornalística de uma “proposta” de projeto de lei dele, em parceria com outros colegas, que institui o Estudo Domiciliar em Manaus.

Não há projetos de leis registrados no site da Câmara pelo vereador Raiff Matos (CMM)

No Brasil, a modalidade de ensino não está prevista em lei e é caracterizada como prática não legalizada, previsto no artigo 246 do Código Penal. O crime ocorre quando o pai, mãe ou responsável deixa de garantir a educação primária aos filhos.

Veja decisão na íntegra