‘O Divino Guaporé’: depois de ganhar documentário, festa centenária de RO é retratada em fotolivro

Os registros históricos compilados no fotolivro mostram como uma mesma cultura entrelaça grupos étnicos de dois países (O Divino Guaporé/Divulgação)

01 de agosto de 2022

21:08

Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – Conhecida por ser a principal manifestação religiosa do Vale do Guaporé, em Rondônia, na região de fronteira com a Bolívia, a Festa do Divino Espírito Santo ganhou um novo olhar pelas lentes e vivências de fotógrafos e ativistas. Essa centenária tradição que, no ano passado, já havia sido contada em um documentário, chega, agora, em forma de literatura, aos lares de ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas e às demais comunidades tradicionais do interior rondoniense retratadas na obra.

Os registros históricos compilados no fotolivro “O Divino Guaporé” mostram como uma mesma cultura entrelaça grupos étnicos de dois países, durante os quarenta dias de peregrinação fluvial. O acesso é democrático, pois, a distribuição de exemplares vai focar nas populações integrantes da Irmandade do Divino, tanto no Brasil quanto no País vizinho. Escolas públicas, bibliotecas, centros de tradição e instituições ligadas à arte e à cultura também serão contempladas.

Foto reúne registros feitos desde os anos 1980 (O Divino Guaporé/Divulgação)

‘Artivismo’

É com registros feitos ao longo de diversas edições do festejo, que os fotógrafos Ederson Lauri, Marcela Bonfim e Luiz Brito ilustram a expressividade de fé e religiosidade de todas as populações integrantes da “Comunidade” do Vale do Guaporé. Apesar de a celebração do Divino acontecer, também, em outros Estados brasileiros, Rondônia se destaca pelo intercâmbio cultural e devoção dos fiéis: são mais de mil quilômetros rio à frente, em quase dois meses de romaria. 

Peregrinação fluvial percorre 40 comunidades entre o Brasil e a Bolívia, passando pelo Estado de Rondônia (O Divino Guaporé/Divulgação)

Marcela Bonfim destaca “a existência e memória de uma Amazônia enegrecida”, como diz a coautora. Ela é de São Paulo, mas vive em Porto Velho desde 2010 e é reconhecida por projetos de militância e reflexão por meio das artes visuais, como ‘(Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta’.

Com a adição desse olhar mais dedicado à pluriculturalidade, os retratos enaltecem o encantamento e a beleza das comunidades quilombolas, indígenas e fronteiriças, além dos costumes daqueles que se reconhecem afroindígenas, caboclos e beradeiros – todos unidos pela devoção ao sagrado.

“As fotografias marcam a resistência das raízes negras entrelaçadas à ancestralidade e cultura indígena, com o alcance e propagação de uma fluência comunitária, exclusiva, e em plena comunicação com a fé”, destacou Bonfim.

Apaixonada pela ancestralidade da Amazônia, Marcela Bonfim é uma das renomadas artistas por trás do livro (Reprodução)

Para contribuir com o projeto, o fotógrafo Ederson Lauri, que também é professor e pesquisador visual, contou com o Laboratório de Narrativas Visuais (Labinavi) da Universidade Federal de Rondônia (Unir). Assim, ele chegou ao resultado que categoriza como “uma importante expressão da identidade local”, pouco conhecida e valorizada pelos próprios rondonienses.

Lauri foi o diretor do documentário que leva o mesmo nome do fotolivro, lançado em 2021, no YouTube da Unir.

Além de fotógrafo, Ederson Lauri atuou como diretor e é pesquisador visual ligado à Unir (Acervo Pessoal/Reprodução)

Já o fotógrafo e documentarista Luiz Brito, que publicou, na obra, registros feitos de 1980 ao início dos anos 2000 e, ainda por cima, é devoto do Divino do Guaporé, sai deste collab satisfatoriamente completo. “Este trabalho foi um importante acontecimento em minha trajetória”, afirmou.

Nascido em Porto Velho, o fotógrafo Luiz Brito classifica o fotolivro como parte de seu autoconhecimento (Reprodução/Ufam)

O livro foi desenvolvido com recursos do Governo do Estado de Rondônia, por meio da Lei Aldir Blanc. São mil cópias, ao todo: metade vai, gratuitamente, para as comunidades tradicionais retratadas na obra. Já os outros 500 exemplares foram encaminhados para bibliotecas de Rondônia e de outros Estados da Região Norte, além de instituições de cultura e arte espalhadas pelo Brasil.

Brasileiros e bolivianos indígenas, quilombolas e ribeirinhos se unem pela fé ao Divino (O Divino Guaporé/Divulgação)

Das telas para as páginas

Antes de se tornar uma obra impressa, a história de “O Divino Guaporé” foi contada em um longa-metragem, produzido, também, por meio da destinação de recursos federais para o incentivo da arte e cultura. Foram dois anos de filmagens até o lançamento, em 2021.  

Importante para as comunidades ribeirinhas, quilombolas, bolivianos e indígenas, a tradição do Culto ao Divino chegou ao território do País com os colonizadores portugueses e se popularizou entre a população negra submetida à escravidão. Na região do Vale do Guaporé, o festejo percorre 40 comunidades entre os territórios brasileiro e boliviano, somando cerca de 130 anos de legado.

Além das romarias fluviais, a festa conta com procissões pelas cidades visitadas (Ésio Mendes/Governo de Rondônia/Reprodução)

A festa sempre culmina num grande banquete, aberto para toda a população presente, uma responsabilidade do “imperador” ou da “imperatriz” do evento. A cada nova edição, são sorteados seus sucessores, além dos novos Capitão de Mastro e Alferes à Bandeira, os quatro principais personagens da tradição. É sempre na comunidade dos imperadores que a nova festa acontece. Já, onde não há nenhum desses sujeitos, a romaria apenas passa e segue rumo à próxima comunidade.

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